Rede entupida: a história de uma hipercomunicação des-subjetivante
Esta é a história que me surgiu quando me desafiaram, enquanto psicóloga clínica e psicanalista, que pensasse o impacto das redes sociais na subjetividade. Na mente do psicanalista nascem imagens e histórias, antes que o pensamento racional lá chegue.
Cheguei de uma galáxia distante, sob outra forma de vida inteligente, para compreender a vida consciente, subjetiva e intersubjetiva na Terra - a vida humana.
Com o meu tamanho microscópico, viajara várias vezes entre os humanos. Fascinara-me esta espécie pela sua particularidade de nascer suficientemente imatura (cérebro não completamente formado) para acabar de crescer cá fora, através de uma relação de dependência, de amor e cuidado, de contenção e significação, para aprender a ser humano: capaz de um pensamento simbólico e de uma consciência de si.
Observara os paradoxos da mente, entre amor e ódio, e das relações humanas, alternando competição e cooperação, a destruição das guerras e a construção de palácios, catedrais e conhecimento.
Mas desta vez algo se tinha alterado profundamente.
Antes observara uma humanidade que, individual e coletivamente, crescia em ciclos de destruição e reconstrução. Agora, enquanto o mundo da ciência e da tecnologia avançava de forma extraordinária, o mundo da relação, do simbólico, parecia estar a recuar.
Observei crianças pequenas reclamando por atenção de pais demasiado ocupados - num ritmo competitivo de vida, ou respondendo à imparável solicitação digital, ou distraídos a fazer zapping nas redes sociais - imediatamente caladas por um ecrã colocado à frente dos seus pequenos narizes. Um ecrã de cores e movimento, de conteúdos ilusoriamente interativos, que por momentos as fazia esquecer da relação real, do toque da pele, do mergulhar nos olhos maravilhados dos pais. A imagem digital tornara-se soberana, empurrando para um canto o corpo e a riqueza da comunicação intersubjetiva. E o mundo deixara de ser um lugar tridimensional misterioso para explorar, mexer, experimentar, para se tornar um lugar bidimensional, hiperativo e dado de bandeja, que os fazia estar sentados e quietos, com uso exclusivo do dedinho indicador. Na ausência de um outro emocionalmente significativo que, através da sua linguagem carregada de significados emocionais, históricos, e transgeracionais, lhes apresenta o mundo simbólico, aqueles humanos pequenos aprendiam poucas palavras maternas, e muitas palavras digitais - Yellow, car, forward… E os pais maravilhavam-se com o “Inglês” que o filho já sabia falar...
Vi crianças que, habituadas à gratificação imediata, não tinham aprendido a esperar e a imaginar. Que sabiam gritar e dizer, mas não sabiam brincar ou comunicar.
Observei as crianças na escola. Procurei sinais do deslumbramento com a leitura e a escrita. Com a liberdade de descobrirem o universo sem tradutor.
Mas vi crianças pouco entusiasmadas. Em casa não se lembravam de ler pequenos livros ou de escrever os primeiros recados – “Mãe, hoje posso...”. Esqueceram-se de ler histórias, porque não lhes tinham sido contadas em pequeninos e não tinham aprendido a viajar com elas. Outros, embora anteriormente adormecidos e encantados por elas, eram atraídos por outro estímulo mais atrativo e fácil, que os livrava do confronto com a incapacidade das primeiras palavras: ecrãs, vídeos. Ou então, o Teams e TikTok, numa socialização permanente que retirava qualquer espaço para estarem sozinhos, para imaginarem outros mundos através dos livros, e descobrirem coisas novas sobre si: “Quando for grande vou ser astronauta e descobrir vida para além da terra…”.
Vi crianças com mais medos e mais tiques nervosos, quietas com os ecrãs, mas irrequietas com tudo o resto.
Espreitei os liceus e universidades. Certamente tudo será diferente agora, nesta fase única do desenvolvimento em que tudo se baralha para se voltar a reconstruir, nesta oportunidade que é a adolescência de mudança de rumo, de encontrar outros modelos, de reconstruir os antigos. Imaginei adolescentes a crepitar de hormonas, aos saltos e aos beijos, deitando o olho para o colega da outra turma, inventando estratégias para convencer os pais a deixá-los sair para passearem de mãos dadas no jardim.
Mas mais uma vez... tudo estava diferente daquilo que imaginara. Agora encontravam-se nos ecrãs, mas pareciam mais perdidos do que nunca. O problema já não era como gerir hormonas, como esconder as borbulhas ou os seios demasiado grandes, a ambivalência entre o desejo e o medo de crescer, mas a confusão de não saberem se eram homens ou mulheres, mesmo quando tinham sido meninos e meninas contentes com o seu corpo...
Pensei como seria possível aprender sobre a identidade sexual e sexualidade através dos ecrãs e das redes sociais... Como aprender sobre o corpo sem comunicar através dele? Os avatares construídos nas redes sociais estariam a criar adolescentes que se sentiam avatares? Que necessitavam de chegar ao coma alcoólico para socializarem, vivendo de noite e comunicando cervejas?
Ouvi um rapaz entristecido, após ter perdido subitamente o pai: “os meus amigos vieram ter comigo, trouxeram cerveja e festa, mas ninguém teve coragem de me perguntar como me sentia...”
Jovens perdidos na identidade sexual, na escolha sexual (quase todos diziam ser bissexuais), na vida sexual (confundiam pornografia com erotismo), nas escolhas profissionais, disfarçadas com “Gap Year” para darem a volta ao mundo à procura de uma volta dentro de si. Outros, sem tantos dilemas nas escolhas, procuravam sem sucesso um companheiro/a para navegar com eles na vida: “Elas dizem que não querem compromisso, querem poder ter vários aos mesmo tempo, não querem perder a liberdade…”
E os pais? Destes bebés, destas crianças, destes adolescentes? Devem estar deprimidos, confusos, a sentirem-se a falhar… Mas novamente me enganei. Os pais estavam também distraídos nas redes sociais, numa hiperatividade não diagnosticada, a postarem fotografias dos filhos e das viagens, numa comunicação desenfreada, afogados em dezenas de grupos WhatsApp...
Entre o trabalho semi-remoto, a gestão digital, o “ubering” parental para as inúmeras atividades extracurriculares e festas de aniversário, sobrava pouco tempo.
Para estar, para ler, para o vazio, para descobrir coisas novas dentro, e criar outras fora. Para o espontâneo, para olhar os filhos e a si mesmos.
Isso explicaria a moda do yoga, da meditação, dos retiros? Humanos perdidos de si marcavam uma hora na agenda para se encontrarem?
Seria culpa da tecnologia? A mesma que ajuda no avanço da ciência e que aboliu separações durante a Pandemia?
Ou seria esta utilização aditiva das redes sociais o sintoma da sociedade individualista de consumo, que oferece objetos no lugar de pensamentos, levando os humanos a consumirem aplicações digitais, “likes” e amigos virtuais, que os distraem do vazio e lhes dão a ilusão de estarem permanentemente acompanhados?
Preocupado, pensei pedir uma resposta ao ChatGPT... mas desisti deste “fast-thinker” que confunde pensamento com correlação de dados...
Melhor aguardar o desconforto necessário para imaginarem uma solução criativa e emocional. Dessas que só o humano sabe fazer.
Publicado em: https://rppsicanalise.org/index.php/rpp/issue/view/10/6